Pouca gente sabe, mas antes do Kiss virar o gigante do rock teatral que lotou estádios pelo mundo, aqui no Brasil já tinha uma banda que usava maquiagem pesada, figurino ousado e um show performático de virar a cabeça: o Secos & Molhados, liderado por Ney Matogrosso.
Essa história não é só sobre semelhanças estéticas. Ela abre espaço pra gente discutir como o Brasil, muitas vezes, é pioneiro em movimentos culturais, mas acaba vendo outros países transformarem nossas ideias em produtos globais. O Kiss ficou com a fama, mas o DNA da teatralidade no rock já tinha nascido em palcos brasileiros.
Vamos entrar nessa viagem?
O Fenômeno Secos & Molhados
Em 1973, o Brasil vivia um período conturbado de ditadura militar, censura e conservadorismo. Nesse cenário sufocado, surge o Secos & Molhados. Ney Matogrosso, João Ricardo, Gérson Conrad e outros músicos trazem um som que misturava rock, MPB, poesia e performance visual.
O primeiro disco vendeu mais de um milhão de cópias, algo absurdo pra época, ainda mais num país com um mercado fonográfico pequeno em comparação com EUA ou Europa. O público não só comprava os discos: ele se encantava com os shows.
E qual era a marca registrada da banda? A maquiagem exagerada, os rostos pintados, as roupas andróginas e a mistura de teatro com música. Ney aparecia de rosto branco, olhos carregados, plumas, brilhos, penas. Uma figura que quebrava padrões de gênero, de masculinidade, de “como um cantor devia ser”.
Em resumo: o Secos & Molhados inventou no Brasil o que depois o mundo chamaria de glam rock performático.
O Kiss Chega Poucos Anos Depois
Nos Estados Unidos, em 1973 também nascia o Kiss. A banda formada por Paul Stanley, Gene Simmons, Ace Frehley e Peter Criss apostava no hard rock direto e em uma imagem agressiva. Mas o que realmente chamou a atenção foi o visual: rostos pintados, personagens definidos, botas gigantes, roupas brilhantes.
Só que tem um detalhe: o Kiss começou a ganhar fama mesmo a partir de 1974/1975. O sucesso de massa veio quando eles já estavam rodando com maquiagem que lembrava demais o que Ney e o Secos & Molhados já faziam nos palcos do Brasil.
Coincidência? Influência direta? É difícil afirmar com 100% de certeza. Mas os paralelos são gritantes.
As Semelhanças Que Não Dá Pra Ignorar
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Maquiagem marcante: Ney com rosto branco e olhos pretos contrastando; Kiss com o mesmo recurso em cada integrante.
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Performances teatrais: enquanto Ney trazia gestos corporais inspirados no teatro e na dança, o Kiss transformava seus shows em espetáculos com fogo e explosões.
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Estética de choque: ambos surgem em sociedades conservadoras – Brasil da ditadura e EUA da moral tradicional – e chocam o público com imagens “extravagantes”.
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Efeito imediato no mercado: Secos & Molhados estourou no Brasil em 1973. Kiss só virou fenômeno mundial em 1975, depois de já existir um modelo visual semelhante do outro lado do continente.
O Brasil Como Laboratório Cultural
Esse é o ponto mais interessante da história. O Brasil tem um histórico de lançar ideias culturais que depois aparecem “embrulhadas para presente” em outros mercados.
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A bossa nova, por exemplo, moldou o jazz mundial e virou referência em Hollywood.
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O samba foi incorporado no repertório de estrelas internacionais.
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O funk carioca hoje inspira DJs gringos e invade festivais na Europa.
O caso Secos & Molhados/Kiss é mais um exemplo. O Brasil já estava produzindo uma estética ousada, desafiadora, visualmente chocante. Só que como o mercado fonográfico internacional não olhava com atenção pra cá, a inovação não teve a mesma projeção mundial.
Quem apareceu depois, com estrutura de gravadora americana, marketing pesado e turnês globais? O Kiss.
“Mas Será Que o Kiss Realmente Copiou?”
Essa é a pergunta que todo mundo faz. Não dá pra bater o martelo com provas de que os caras viram Ney Matogrosso e copiaram. Mas alguns fatores levantam suspeitas:
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A época é praticamente a mesma – Secos & Molhados em 1973 já fazia maquiagem e shows performáticos. O Kiss só consolidou isso em 1974/75.
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O alcance internacional da cultura brasileira – músicos e produtores sempre viajaram muito. Não seria impossível que alguém tivesse mostrado fotos ou falado sobre “aquela banda brasileira diferente”.
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A similaridade visual é impressionante – mesmo com diferenças de estilo, o rosto branco com olhos pintados pretos não era algo comum.
Ou seja, não precisa de um “dossiê” pra entender que há, sim, uma inspiração direta ou indireta.
Ney Matogrosso: Um Ícone Muito Além da Estética
Vale destacar que Ney não era só maquiagem. Sua voz aguda, seu jeito andrógino, sua dança, sua presença de palco – tudo isso transformou a música brasileira. Ney não queria ser um “personagem”; ele era ele mesmo, em estado bruto.
O Kiss, por outro lado, criou personas fictícias: o demônio (Gene Simmons), o homem das estrelas (Paul Stanley), o homem-gato (Peter Criss) e o homem do espaço (Ace Frehley). Era quase uma HQ em forma de banda.
Enquanto Ney cutucava a censura, questionava gêneros e afrontava a ditadura, o Kiss fazia entretenimento de massa. São propostas diferentes, mas visualmente, não dá pra negar que há ecos do que Ney já fazia no Brasil.
Por Que Essa História Importa
Muita gente acha que o Brasil só consome cultura importada. Mas a realidade é que a gente sempre exportou ideias – só que muitas vezes sem receber os créditos.
Esse caso mostra duas coisas:
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Temos um poder de importação cultural enorme – porque sabemos reinterpretar tendências mundiais e transformar em algo único.
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Temos também um poder de exportação – o mundo olha pro Brasil como fonte de criatividade, mesmo que isso não seja sempre reconhecido.
No fim das contas, Ney Matogrosso e o Secos & Molhados mostram que a gente já estava à frente do tempo.
O Brasil no Mercado Musical Mundial
Hoje, mais do que nunca, o Brasil tem peso global:
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Anitta coloca o funk carioca nos charts internacionais.
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Pabllo Vittar vira referência em representatividade LGBTQIA+ e cruza fronteiras.
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Baile funk toca em Londres, Paris e Nova York.
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Ritmos brasileiros são sampleados por DJs e produtores de rap e eletrônica.
Ou seja: o Brasil nunca esteve de fora. Talvez só falte mesmo contar melhor nossas histórias e assumir nosso papel de criadores, e não só de consumidores.
Conclusão: O Beijo Era Nosso
O Kiss vai continuar sendo lembrado como uma das maiores bandas do rock mundial. Mas é importante a gente resgatar que, antes deles, já tinha Ney Matogrosso pintando o rosto e transformando o palco num espaço de liberdade e ousadia.
Não é sobre provar que “o Kiss copiou mesmo”. É sobre mostrar que o Brasil sempre foi fonte de inovação. A diferença é que muitas vezes o gringo vem, pega a ideia, embala bonito e vende pro mundo inteiro.
A lição aqui é: precisamos valorizar nossas criações, dar crédito pros nossos artistas e entender que, sim, o Brasil tem e sempre teve um papel central na cultura mundial.
Resumo da Ópera: da próxima vez que você ver um show do Kiss com as maquiagens icônicas, lembra que, alguns anos antes, Ney Matogrosso já brilhava nos palcos brasileiros, quebrando regras, ditando moda e influenciando o que o mundo iria chamar de espetáculo.
